Os jardins da Ombu

m_mello_dsc_0010-copia

A capital catarinense estava no roteiro da miniturnê pelo sul que a banda paulistana Ombu realizou no início desse mês e o Mamute reporta o encontro com a árvore de quatro ramos

– Mateus Mello –

Há um mês o Taliesyn Rock Bar abriu suas portas para uma dobradinha da Balaclava Records. Victor Fabri (vocal e guitarra da manezinha Rascal Experience) não só descolou espaço para um show do seu projeto solo, Frabin, como trouxe a Ombu para tocar pela primeira vez em Santa Catarina. O evento criado para ajudar na divulgação via Facebook anunciava o início das apresentações às 21 horas, advertindo aos interessados, com letras garrafais e excesso de pontuação, para chegarem cedo…

“Tempo passa; compreender toda pessoa que relacionei

 Tempo passa; compreender todo caminho que relacionei

Tempo passa; compreender toda certeza que relacionei”

(Tempo, uma espécie de convite a autocontemplação)

Vendo os três, ali, plácidos, conversando embaixo da luz exagerada de um poste, lembrei de uma capa antiga da revista Veja. A edição que chegava às bancas no dia 12 de fevereiro de 1975 estampava, sobre fundo laranja claro, três nobres cavaleiros da nossa música popular sentados ao redor de uma mesinha quadrada de boteco: Cartola, Ismael Silva e Mano Décio da Viola.

m_mello_capa-veja-336

Diferente dos lendários sambistas, que sempre trajavam camisa de botão, calça social e sapatos impecáveis – quando não terno e gravata –, os músicos sentados na esquina da Victor Meirelles com a Nunes Machado não teriam demorado 15 minutos para se vestir. Na indumentária simples, composta por pares de tênis surrados, bermudas de ficar em casa e camisetas brancas, a peça mais próxima de ser considerada “de luxo” era o bonezinho verde, pique Mac DeMarco, na cabeça do vocalista – e mesmo esse item estava longe disso.

À esquerda, sentado na mesma cadeira que o autor do primeiro samba-enredo da Verde e Rosa, João Viegas, baixo e vocal da banda paulistana; à direita, Santiago Mazzoli, o guitarrista, ocupava o lugar do único compositor tetracampeão do carnaval carioca; entre os dois, o baterista Thiago Barros chefiava a simetria da cena, como faz, na capa em questão, o fundador da Deixa Falar – primeira entre todas as escolas de samba.

Percebia-se em seus rostos certo cansaço, como brotos de ervas daninhas, absorvendo a serenidade que lhes é natural. Mesmo assim, com sorrisos tímidos, ofereceram o lugar desocupado.

Como se recusassem a acreditar que alguém fora de São Paulo conhecesse a identidade dos homens por trás de uma banda cujo canal do youtube mal alcançou 140 inscritos, disseram seus nomes. Depois quiseram saber há quanto tempo eu conhecia a Ombu (respondi que “Desde o lançamento do EP Mulher”, em abril de 2015) e, no embalo da resposta, perguntaram se eu conhecia a Raça – projeto mais antigo (e paralelo) do Tiago…

m_mello_dsc_0027-copia

É que em outubro, João entrou oficialmente nessa outra banda, se juntando, além do batera, ao vocalista Marcelo “Popoto” Ferreira, o baixista Lucas “Novato” Calmon e o guitarrista Lucas Tamashiro. E este último, em junho já tinha sido anunciado como o quarto membro da Ombu, onde assumiu segunda guitarra e sintetizadores. Volta e meia as duas bandas se apresentam juntas e, não raro, uma divulga os lançamentos da outra em seus perfis e fanpages. Em outras palavras, são quase um coletivo, por isso ninguém se surpreendeu com esse troca-troca.

Tamashiro – também de camiseta branca – apareceu em poucos minutos. Mesmo sendo o último a entrar no grupo, é o que menos se surpreenderia se fosse abordado na rua por um fã – a rosa tatuada abaixo do pomo-de-adão entrega: é dele o retrato na capa do mais recente EP da banda, Pedro, lançado em junho desse ano. Pedro, por sua vez, é o principal responsável pela primeira apresentação da banda em Florianópolis.

Entre todas as oportunidades que trouxe o lançamento deste EP, surgiu o convite para abrir a primeira edição do Balaclava Fest no Rio Grande do Sul (festival organizado pela produtora e selo de mesmo nome, originalmente sediado em São Paulo), que contou com os shows do trio canadense TOPS e do quarteto londrino Yuck em um bar da capital gaúcha. Aproveitando o embalo e a gasolina do carro, a Ombu resolveu transformar a viagem em uma mini-turnê, agendando apresentações nas outras capitais da região Sul.

Na estiva

O aspecto cansado era fome. A apresentação em Porto Alegre tinha sido na noite anterior e desde que chegaram na ilha não tiveram tempo para comer. Foram para o bar cedo porque viram a advertência no evento do Facebook, mas nem o funcionário que cuida da entrada do estabelecimento sabia explicar o atraso: “A gente abriu no horário combinado. Os caras já tão aí, não sei porque não começaram ainda”, me disse ele apontando com a cabeça um dos músicos que acompanham o Frabin que andava ali na frente. O quarteto cansou de esperar e resolveu procurar um lugar para “bater a larica”.

m_mello_dsc_0011-copia

Antes de saírem para jantar, entraram no bar para saber a quantas iam os preparativos. Frabin e companhia começavam arrumar seus instrumentos naquele momento e pediram ajuda. Enquanto João e Tiago auxiliavam a montagem, Santiago, com a calma de um professor primário, contou que os dois cursaram Produção Musical na Belas Artes e daí vinha boa parte da preocupação que a banda tem com as questões técnicas do som.

Quando perguntei sobre possível a interferência da guerra ideológica pela qual o país passa na produção artística brasileira, Santi, como é carinhosamente chamado pelos amigos e fãs, revelou ser totalmente despolitizado, explicou que as músicas que eles escrevem e tocam surgem unicamente de uma necessidade de externar sentimentos pessoais e agradeceu por eu entender essa visão “espiritual” do negócio. Para ele, a música sincera é assim mesmo: muitos vão escutar, mas nem todos vão se identificar porque “quando toca, toca”.

Thiago, João, Santiago e Tamashiro foram comer. Ficaram fora por quase uma hora, tempo suficiente para que a banda anfitriã solucionasse todo e qualquer problema que podesse estar impedindo o início da apresentação. Quando voltaram ao bar Frabin tocava a terceira música, duas dúzias de clientes já consumiam e o amigo que os hospedaria durante a estada em Floripa já estava lá: Kílary Burtet, guitarrista da banda gaúcha Não ao Futebol Moderno (NAFM)

Subiram ao palco assim que a banda anfitriã desceu. A apresentação não começou imediatamente. O sintetizador precisava ser instalado, guitarras e baixo passaram por uma nova afinação e a bateria, recebeu alguns ajustes. Essa atenção toda tinha um objetivo: impedir que qualquer instrumento abafasse o microfone principal, extraviando assim a mensagem da banda em qualquer lugar entre a caixa amplificadora  e os ouvidos de quem, mesmo sem os conhecer, resolvesse prestar atenção nas letras. A Ombu não existe para fazer barulho, e se for necessário, “toca na manha” para conquistar um público novo.

Os que ficaram em volta do palco enquanto os equipamentos eram regulados foram presenteados com uma palinha de Caça, canção do EP de estreia, Caminho da Pedras, gravado em janeiro de 2013. Quase desconhecido, o primeiro registro em estúdio da banda só pode ser ouvido pelo Bandcamp (espécie de rede social pensada para que artistas e gravadoras independentes consigam divulgar e vender seus produtos de forma autônoma). É essa a origem da confusão em torno da quantidade de EP’s lançados pelo grupo: alguns sites especializados afirmam que são dois, outros falam em três. Sobre esse assunto, os músicos explicam que consideram Mulher seu primeiro EP porque antes dele não houveram tentativas de divulgação, foram experienciais no sentido de “se encontrar como banda”.

A Ombu não pretendia encher a casa, e sem estrelismos começou a apresentação para as quatro pessoas que não tinham saído do estabelecimento para fumar ou beber.

O show

Parecia um ensaio aberto ao público. Eles tocavam os inícios algumas músicas aleatórias antes de os acordes de Carroça surgirem e foi preciso escutar metade da canção para ter certeza que aquilo já não era passagem de som.

“Essa é uma música do nosso novo EP, e ela se chama Calma“, anunciou João com o tom de voz suspirante de quem tenta convencer um relógio a não deixar seus ponteiros correrem tanto. A comemoração de um dos espectadores foi uma amostra da popularidade do single. Liberado dez dias antes, seus versos já estavam nas cabeças dos fãs quando as demais faixas foram disponibilizadas nas plataformas digitais: “Calma / É só uma volta errada”…

Acompanhado dos suaves toques produzidos pelo precision sunburst do vocalista, sentado numa cadeira de madeira, Santiago iniciou Haule com o riff cadenciado e provocante da canção. Entre as seis músicas do Mulher, é a com menor número de execuções no youtube, o que não da para entender – seu ritmo de passeio na praia em dia nublado faz qualquer um querer dançar, sambar.

Fim do mundo pode parecer hesitante aqueles que se deixam enganar pelas notas baixas e espeçadas do começo. Mas a música tem duas partes, um “início do fim” e o “apocalipse now”. Na primeira, João canta a confusão em que se encontram seus pensamentos, como o personagem de H. G. Wells antes de entender a invasão alienígena; na segunda, instrumental, a poesia não-verbal assume o papel narrativo, descrevendo uma tempestade de pratos e distorções que toma conta do ambiente e carrega os mais perceptivos a um embate interno.

Quase tão densa quanto a anterior, Não faz trouxe uma visão mais otimista – para não dizer conformista – que secretamente dialoga com as emoções despertadas antes: “Se alguém tiver que viver / eu direi que você é capaz / e se eu tiver que enlouquecer, saiba / não é nada demais”. E uma versão reduzida da já citada Tremolo parece continuar a conversa: “Pensar é um desequilíbrio / cada vez mais nítido / não vamos pertencer / a nada que nos deixe estável”.

Numa das pausas para bicar a cachaça oferecida pelo amigo da NAFM, João explicou que não tava muito louco e se cantava com os olhos fechados, fazia por nervosismo: “Eu sou tímido”. A essa altura o número de pessoas ao redor do palco alcançava o seu máximo: 12 pessoas. Entre elas, Frabin, que indagou: “Vocês não vão tocar o Pedro?”. A banda explicou que “estava indo aos poucos” e antes de mandarem Surdina, escutaram outro pedido: “Toca Omça!” – e Omça foi a seguinte, atendendo aos dois.

As duas últimas músicas da noite foram anunciadas. Os músicos agradeceram ao Frabin pela produção, ao bar pelo espaço e aos presentes pela atenção. Sem mais, concluíram sua Sina para seguir a estrada sem chamar atenção.

O Tiago já tinha começado o desmonte da batera quando os outros três lembraram que faltava uma; se riram, contra-baixo tombou e Santiago ameaçou cantar (“Nem fodendo!”). Na medida do possível, o encerramento saiu como o planejado:

“Sabe o que é?

estou perdido em um lugar

onde o tempo não passou ou

é mais rápido

Como vou saber

se vou me machucar ao te dar um ‘oi’

sempre fui deixando tudo pra depois

e ainda faço igual […]”

Originalmente denominada “Câncer”, Queria contava com mais 11 versos que, junto ao título, não deixavam dúvidas a respeito de sua temática. Além de a letra ser reduzida, a melodia ganhou velocidade, exigindo que os trechos remanescentes fossem alterados para se ajustar foneticamente. Com a nova roupagem, a canção já não remete necessariamente a uma doença física; talvez a uma doença espiritual: a insegurança pós-moderna, a eterna falta de tempo.

Tempo. Tema corrente na obra da banda – seja no conteúdo das letras, nos vazios e repetições das melodias ou mesmo na tranquilidade que demonstraram dentro e fora do palco. Postura que faz lembrar o conceito de consciência verde (desenvolvido pelo roteirista de histórias em quadrinho Alan Moore entre 84 e 87 no título mensal A saga do monstro do pântano), que em poucas palavras, diz respeito a um estado de equilíbrio entre animais, vegetais e o planeta.

Pode ser que o nome não tenha nada a ver, mas numa era em que selvas de pedras se proliferam, fica a impressão que a Ombu é mesmo uma árvore. Árvore orgânica de quatro ramos, originaria da maior metrópole do país, que espalha suas raízes por onde passa, criando jardins – retiros espirituais – através da poesia, da música.

Também publicado no blog Mamute Noise.

Deixe um comentário