“Não pretendo voltar”, diz pernambucano que trocou o Nordeste pela alemã Blumenau

Apesar da queda da migração interna no Brasil, o número de nordestinos na cidade da Oktoberfest só cresce. E, mesmo que sofram discriminação, conseguiram o que vieram buscar no Sul: empregos e qualidade de vida.

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Por Bruna Silva

Acredita-se que o baiano José Bonifácio da Cunha foi o primeiro nordestino a pisar em terras blumenauenses. Os documentos armazenados pelo Arquivo Histórico José Ferreira da Silva, instituição vinculada à Fundação Cultural de Blumenau, revelam que Dr. Cunha, como era conhecido, nasceu em Santo Amaro – cidade baiana onde também nasceram Caetano Veloso e Maria Bethânia – em 1860 e formou-se médico na Faculdade de Medicina da Bahia. Não se tem um registro exato da data em que Cunha chegou à Santa Catarina, mas sabe-se que aqui conheceu Lili Schmidt, imigrante de origem alemã com quem se casou um tempo depois. De 1899 a 1902, José Bonifácio da Cunha foi prefeito de Blumenau.

O pernambucano Edenildo Amaro dos Santos, hoje com 39 anos, desembarcou na cidade, conhecida nacionalmente pela Oktoberfest, pelos costumes alemães e pelas enchentes devastadoras, em 2009, mais de um século depois de Dr. Cunha. Para o servente de pedreiro e seus amigos do Recife, no entanto, Blumenau tem a fama de ser um ótimo lugar para mudar de vida e, apesar de uma pesquisa do IBGE publicada em 2011 revelar uma queda da migração interna no Brasil, o número de conterrâneos de Edenildo na cidade catarinense – e em outras cidades do Vale de Itajaí, como é o caso de Brusque – só cresce. Inclusive, em 2006, foi fundada a Associação dos Nordestinos de Blumenau, que funciona até hoje.

Edenildo Amaro dos Santos tomou a decisão de vir para Santa Catarina uma semana antes da viagem, após uma discussão com a mulher. Irritado por conta da briga, ele pegou a bicicleta e foi até a casa do amigo Léo, com quem se dava muito bem. Ao chegar, foi informado pela mãe de Léo que ele tinha se mudado. “Ela me disse que ele tinha ido para Santa Catarina, trabalhar de pedreiro. Foi bem naquela época da enchente de 2008, quando estavam reconstruindo a cidade”, conta. Conversando com a mãe do rapaz, Edenildo começou a pensar que talvez ele devesse fazer o mesmo. Ligou para o amigo, que contou como a vida era melhor no Sul e se disponibilizou para ajudar com a mudança. De cabeça quente, decidiu que iria. No dia seguinte, Léo arranjou um emprego para Edenildo na construtora em que trabalhava, e eles lhe enviaram uma passagem de ida. Com uma mala na mão e duas notas de 100 reais no bolso, o pernambucano entrou, pela primeira vez, em um avião. A mulher e as filhas ficaram no Recife.

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Os primeiros dias não foram fáceis. A mala foi extraviada e ele se viu com apenas uma muda de roupas na mochila. Mas, com a ajuda das pessoas que conheceu, muitos deles conterrâneos, Edenildo se estabilizou rápido em Blumenau. Com o primeiro salário, alugou uma casa no bairro da Glória, na zona sul da cidade e, depois de 45 dias, voltou para buscar a família em Pernambuco. “Não aguentava de saudade delas”, diz o pai e marido dedicado. Ele conta que não foi fácil convencer a mulher, Rosa, a arrumar as malas. “A família de Rosa não queria que ela viesse. Todo mundo disse que ela iria se arrepender”. Hoje, quase seis anos depois da mudança, Edenildo diz que a família nunca esteve tão bem de vida.

Para chegar na casa em que a família Santos mora em Blumenau, no bairro Progresso, é necessário encarar uma subida íngreme e 78 degraus de uma escada improvisada, sem corrimão. A casa, recentemente pintada de azul, é simples. São dois quartos, um banheiro, uma cozinha e uma sala de estar pequena. Mas a geladeira moderna, o fogão novo e a TV de 42 polegadas indicam que a família vive com certo conforto.

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Juntando o seu salário com o da mulher, que trabalha como auxiliar de limpeza em um asilo da cidade, com “carteira assinada e tudo, veja só”, Edenildo conseguiu terminar de pagar a casa, que custou 35 mil reais, no último mês de março, cinco meses antes do previsto. Recentemente, recebeu uma proposta inesperada – uma senhora queria dar 60 mil pelo imóvel. “Com esse dinheiro, compro umas três casas na minha terra. Fiquei tentado, mas decidi não vender. Não agora, pelo menos”.

No Recife, o casal e as duas filhas, Samara, de 12 anos, e Sabrina, de 14, moravam em uma casa boa, “com três quartos, sala e cozinha grandes, garagem e até um quintalzinho”, mas não tinham segurança nenhuma. Quando decidiram vir para Santa Catarina, venderam o imóvel, localizado em uma favela da capital pernambucana, por 11 mil reais. Lá, Edenildo ganhava 300 reais – hoje ganha por volta de 1.500. Rosa não tinha emprego. As meninas não podiam brincar na rua. Ele revela que nunca chegaram a passar fome, mas se o botijão de gás secava ele tinha que comprar outro fiado, porque nunca tinha dinheiro em mãos. “A vida era difícil lá, coisinha”, diz ele, enquanto oferece um pedaço de bolo e um copo de refrigerante – a bebida retirada de uma geladeira bem abastecida.

A única coisa que incomoda Edenildo e a família é a discriminação, os “olhares atravessados” que recebem de algumas pessoas em Blumenau. Nervoso, ele relata sobre o dia em que Rosa levou a filha ao salão de beleza e a cabelereira nem se deu ao trabalho de levantar da cadeira. “Ela deve ter achado que não tínhamos como pagar, ou que não estávamos vestidos de acordo. Isso me tira do sério”, confessa. Entre as coisas que já ouviu na rua, Edenildo destaca “essa mania de achar que todo mundo que vem lá de cima é ladrão”. Para ele, seus conterrâneos são muito trabalhadores e honestos e diz que “gente ruim tem em todo lugar, assim como gente boa”.

Edenildo fez muitas amizades em Blumenau. Dois de seus amigos mais íntimos são blumenauenses, “um deles um alemão de verdade”. O alemão “de verdade” é Edson Muller. Muller mora no prédio em que Edenildo, há alguns anos, trabalhou como porteiro. A confiança no “baixinho”, como o pernambucano é chamado pelo amigo, é tanta que, quando viaja, o blumenauense deixa as chaves com Edenildo para que ele tome conta de sua casa.

O agente de viagens Ailson da Silva é outro catarinense que Edenildo conquistou. Os dois se conheceram quando o pernambucano rodava o centro da cidade em busca de uma boa tarifa de avião para o Recife. Na época, Edenildo não tinha cartão de crédito nem dinheiro suficiente para pagar a vista pela passagem. Silva, comovido pela situação, resolveu fazer a compra com seu próprio cartão. “Disse para ele que poderia me pagar aos poucos. Dei confiança e ele não me decepcionou. Pagou cada centavo”, assegura. O agente diz que, nos últimos tempos, tem vendido muitas passagens para nordestinos. Ele destaca que a maioria deles costumava viajar de ônibus, mas, por conta da queda das tarifas aéreas e da comodidade e rapidez do avião – de ônibus, são cinco dias de viagem entre Blumenau e Recife – os aeroportos têm sido cada vez mais frequentados por Edenildo e seus conterrâneos. “Só viajo de avião agora. Quando a família toda quer vir para cá, compro antecipado com o Ailson e parcelo o valor. De ônibus não dá, é muito cansativo”, ressalta.

A família do pernambucano é grande. Eles eram em 13 irmãos, mas quatro morreram ainda crianças. A mãe ficou no Recife, o pai faleceu em 2010. Dos irmãos, além de Edenildo, outros três moram em Blumenau. Os que continuam no Nordeste estudam a possibilidade de seguir os passos de Edenildo. Ele, no entanto, diz que não pretende voltar para Pernambuco, nem para visitar. “A minha família é complicada, coisinha. Para você ter uma ideia, da última vez que fui para lá, para ficar 20 dias, meu irmão me cobrou aluguel para ficar na casa dele. Um outro fez compras no meu cartão, mais de 7 mil reais, e nunca me pagou”.

Apesar do desejo de continuar morando em Santa Catarina, Edenildo confessa que sente falta da sua “terrinha”. A saudade tem até data para bater: em junho, mês de festa junina, mês de São João. “É uma tradição para a gente. Quando vi que aqui não se comemora São João, pelo menos não do jeito que eu conheço, me deu até uma dor no coração”, lamenta. Além da festa, Edenildo e a família sentem falta da culinária regional, composta de pratos como o sarapatel, um guisado feito com miúdos de porco, a tapioca e a carne de sol. “Também tenho saudade de tomar Pitú”, diz ele, rindo, mostrando uma latinha da famosa cachaça pernambucana que um amigo trouxe recentemente de viagem.

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Mas, apesar do preconceito e da discriminação que já sofreu e ainda sofre, Edenildo está certo de que para o Recife ele e a família não voltam. “Uma vez, no Posto de Saúde aqui pertinho, ouvi uma enfermeira dizer que nordestino é uma praga, que a gente vem para roubar o emprego do pessoal daqui, que somos um bando de mortos de fome. Nas eleições, ouvi muita gente dizendo que nordestino é burro, que foi a gente que reelegeu a Dilma. Quer saber? Votei no Aécio. Trabalho, ganho meu dinheiro, minhas filhas não passam fome. E, por mais que existam muitas pessoas como ela, sei que muitas outras pensam diferente. E é por isso que vou continuar morando aqui. Entende, coisinha?”

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3 Respostas para ““Não pretendo voltar”, diz pernambucano que trocou o Nordeste pela alemã Blumenau

  1. Sempre que se comenta alguma coisa, vem logo aquela enxurrada de comentários gritando: “Preconceito!”. Mas o grande problema que vejo nessas histórias de migração desordenada é a perda das características de cidades como Blumenau. O que torna este tipo de cidade tão encantadora é justamente o fato de ter conseguido preservar a sua cultura e a sua identidade próprias. Se houver uma verdadeira invasão de nordestinos, como aconteceu em São Paulo, em breve teremos mais uma “cidade nordestina fora do nordeste”, como é chamada hoje a antiga “Terra da Garoa”…
    Nada contra os nordestinos, esses verdadeiros guerreiros que, em sua maioria, são gente de bem e trabalhadora, que tem todo o direito de buscar uma vida melhor. Mas que é triste ver a descaracterização lenta de cidades tão típicas, isto é um fato.

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