“Arpilleras” de um país alagado

Costura concebida na luta contra a ditadura chilena oferece a mulheres brasileiras uma nova perspectiva para combater violações sociais em regiões afetadas por barragens

Detalhe de uma das arpilleras. Técnica surgiu no Chile durante o regime ditatorial de Augusto Pinochet - Foto: Acervo Coletivo de Comunicação do MAB

Detalhe de uma das arpilleras: técnica surgiu no Chile durante o regime ditatorial de Augusto Pinochet – Foto: Acervo Coletivo de Comunicação do MAB

Por Pedro Stropasolas

A técnica é conhecida como arpillera, um tipo de bordado utilizando retalhos sobre sacos de farinha e arroz criado em Isla Negra, no Chile, e que se propagou como importante instrumento de resistência para as mulheres chilenas durante o regime militar no país do ditador Augusto Pinochet (1973 a 1989). Hoje, para reforçar sua identidade de gênero e denunciar  casos como abusos sexuais e discriminações, as brasileiras utilizam a mesma forma de combate. Dentre as pessoas que vivem às margens de rios ou em pequenos bairros e cidades brasileiras onde se construiu ou planeja-se erguer barragens para usinas hidrelétricas, cerca de 900 mulheres vem costurando suas memórias e desenvolvendo uma valiosa ferramenta de luta. É através da arte que buscam direitos civis e enfrentam as diversas formas de violência e injustiças com as quais convivem.

Os dados do Conselho Nacional dos Direitos Humanos confirmam uma realidade preocupante: há nas regiões atingidas por barragens no Brasil um padrão de violação de 16 direitos humanos – entre eles os de direito à moradia adequada e compensação das perdas -, todos  consequência da realização dessas megaobras. A situação das mulheres que vivem nessas áreas é ainda mais grave. Casos de exploração sexual, violência doméstica e tráfico de pessoas são comuns. Em Porto velho, na construção da hidrelétrica de Santo Antônio, entre 2008 e 2010, foram registrados um aumento de 44% no número de homicídios dolosos, e o índice de estupros atingiu um crescimento de 208% em três anos, conforme uma pesquisa da Plataforma Dhesca.

“Uma linguagem própria para ressignificar suas próprias histórias”, define Esther Vital, integrante do Coletivo de Mulheres do Movimento dos Atingidos por Barragens(MAB), sobre  o papel das arpilleras na documentação  da realidade feminina nesses locais. Foi por iniciativa de Esther que este bordado chileno alcançou as cinco regiões brasileiras. Após a exposição Arpilleras da resistência política chilena, que ocorreu em 2013 na cidade de São Paulo e teve como curadora a pesquisadora chilena Roberta Bacic, Esther aproveitou a boa repercussão para promover mais de 100 oficinas ao redor do país. Os cursos ofereceram capacitação e documentação têxtil para cerca de 900 mulheres atingidas – todas vinculadas ao MAB -, com o intuito de auxiliar na construção de bordados que relatam o impacto das barragens em suas vidas.

Sobre a escolha das arpilleras como ferramenta de resistência, Esther enfatiza a importância dessa forma de manifestação em contraponto à linguagem verbal, que para ela acaba “reproduzindo a posição da classe dominante”, no caso, a masculina. Para ela, uma consequência fundamental da entrada do bordado é a desconstrução de valores tradicionais , que acabam colocando as mulheres em condições inferiores. Há valores que já estão tão humanizados que elas não se veem violadas. A partir das arpilleras as mulheres desmontam  contradições e começam a entender melhor seus direitos”.

Protagonistas das suas lutas

Mulheres atingidas por barragens participam de oficina de costura: foram mais de 100 organizadas pelo MAB entre as cinco regiões do Brasil - Foto: Acervo Coletivo de Comunicação do MAB

Mulheres atingidas por barragens em ação no curso de costura: mais de 100 oficinas foram organizadas pelo MAB entre as cinco regiões do Brasil – Foto: Acervo Coletivo de Comunicação do MAB

Como forma de socializar o aprendizado destas mulheres não só no universo artístico, mas também nas questões vinculadas ao gênero, surgiu em 2013, em um Congresso Nacional do MAB, a ideia do documentário Arpilleras: Bordando a resistência. O longa retrata a vida de cinco mulheres – uma em cada região do Brasil –  que através de uma arpillera coletiva contam a sua história e de seu local de origem dentro da proposta de expor o impacto social e as violações de direitos humanos causadas pela construção de barragens.

Adriane Canan, diretora do documentário, destaca a importância da produção do filme para dar visibilidade ao movimento das arpilleras. Para a jornalista catarinense, que em 2011 retratou o movimento das mulheres camponesas pelo oeste de Santa Catarina no longa Mulheres de terra,  a narrativa documental é fundamental para dar voz à subjetividade dessas histórias, “ estas mulheres não devem ser vistas apenas como vítimas, mas protagonistas de suas lutas”.  O filme está desde o dia 1º de abril, disponível na plataforma Catarse, para financiamento coletivo. Sobre essa forma de narrativa social participativa, Canan vê com entusiasmo a participação dos apoiadores por “se sentirem responsáveis por aquelas mulheres”.

O MAB foi criado no fim dos anos 70 , ainda na ditadura militar, período em que os direitos civis e políticos haviam sido cassados. Surgiu no contexto de outros movimentos de frentes trabalhistas, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra(MST), a Central Única dos Trabalhadores(CUT) e o próprio Partido dos Trabalhadores(PT), em contraponto à situação política do país.

Em meio ao déficit energético mundial em meados dos anos 70 – impulsionado pela primeira grande crise do petróleo -, o governo militar brasileiro, através da Eletrobrás, intensificou os estudos sobre o potencial hidrelétrico no país. As pesquisas resultaram em um mapeamento dos locais com rios mais propícios para a construção de usinas, analisando fatores como o volume de água e as quedas d´agua com capacidade suficiente para geração de eletricidade.  A consequência, a partir desse período, foi a construção de mais de duas mil barragens ao redor do país, que acarretaram no despejo forçado de 1 milhão de pessoas. Deste total, cerca de 70% não receberam nenhum tipo de indenização.

5 Respostas para ““Arpilleras” de um país alagado

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